Texto I
Feliz por nada
Geralmente, quando uma pessoa exclama “Estou tão feliz!”, é porque engatou um novo amor, conseguiu uma promoção, ganhou uma
bolsa de estudos, perdeu os quilos que precisava ou algo do tipo. Há sempre um porquê. Eu costumo torcer para que essa felicidade dure
um bom tempo, mas sei que as novidades envelhecem e que não é seguro se sentir feliz apenas por atingimento de metas. Muito melhor é
ser feliz por nada.
Feliz por estar com as dívidas pagas. Feliz porque alguém o elogiou. Feliz porque existe uma perspectiva de viagem daqui a alguns
meses. Feliz porque você não magoou ninguém hoje. Feliz porque daqui a pouco será hora de dormir e não há lugar no mundo mais
acolhedor do que sua cama. Mesmo sendo motivos prosaicos, isso ainda é ser feliz por muito.
Feliz por nada, nada mesmo? Talvez passe pela total despreocupação com essa busca. Essa tal de felicidade inferniza. “Faça isso, faça
aquilo”. A troco? Quem garante que todos chegam lá pelo mesmo caminho?
Particularmente, gosto de quem tem compromisso com a alegria, que procura relativizar as chatices diárias e se concentrar no que
importa pra valer, e assim alivia o seu cotidiano e não atormenta o dos outros. Mas não estando alegre, é possível ser feliz também. Não
estando “realizado”, também. Estando triste, felicíssimo igual. Porque felicidade é calma. Consciência. É ter talento para aturar o inevitável, é
tirar algum proveito do imprevisto, é ficar debochadamente assombrado consigo próprio: como é que eu me meti nessa, como é que foi
acontecer comigo? Pois é, são os efeitos colaterais de se estar vivo.
Benditos os que conseguem se deixar em paz. Os que não se cobram por não terem cumprido suas resoluções, que não se culpam por
terem falhado, não se torturam por terem sido contraditórios, não se punem por não terem sido perfeitos. Apenas fazem o melhor que
podem.
Se é para ser mestre em alguma coisa, então que sejamos mestres em nos libertar da patrulha do pensamento. De querer se adequar à
sociedade e ao mesmo tempo ser livre. Adequação e liberdade simultaneamente? É uma senhora ambição. Demanda a energia de uma
usina. Para que se consumir tanto?
A vida não é um questionário de Proust. Você não precisa ter que responder ao mundo quais são suas qualidades, sua cor preferida, seu
prato favorito, que bicho seria. Que mania de se autoconhecer. Chega de se autoconhecer. Você é o que é, um imperfeito bemintencionado
e que muda de opinião sem a menor culpa.
Ser feliz por nada talvez seja isso.
MEDEIROS, Martha. Felicidade crônica. 15.ed. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 86-87.