A felicidade é particular para cada ser humano, é uma questão muito individual. Mesmo que a ideia
compartilhada entre a maior parte das pessoas seja que esse conceito é construído com saúde, amor,
dinheiro, entre outros itens.
A filosofia que investiga e se dedica para definir e esclarecer as ideias do ser humano é excelente para
refletir sobre a felicidade. E as primeiras reflexões de filosofia sobre ética continham o assunto felicidade, na
Grécia antiga.
A mais antiga referência de filosofia sobre esse tema é o fragmento do texto de Tales de Mileto, este que
viveu entre 7 a.C. e 6 a.C. Para Tales, ser feliz é ter corpo forte e são, boa sorte e alma formada.
Para Sócrates, essa ideia teve rumo novo, ele postulou que não havia relação da felicidade com somente
satisfação dos desejos e necessidades do corpo, mas que o homem não é apenas corpo, e sim em principal,
alma. Felicidade seria o bem da alma, através da conduta justa e virtuosa.
E já para Kant, a felicidade está no âmbito do prazer e desejo, e não há relação com Ética, logo não seria
tema para investigar de maneira filosófica.
Mas ao que cerca a língua inglesa, na época de Kant, a felicidade teve destaque no pensamento político
e sua busca passou a ser “direito do homem”, e isso é consignado na Constituição dos Estados Unidos da
América, de 1787, redigida de acordo com o Iluminismo.
No século 20, surge uma nova reflexão sobre o tema do inglês Bertrand Russel com a obra A Conquista
da Felicidade, com método da investigação lógica; para Bertrand, por síntese, ser feliz é eliminar o
egocentrismo.
Texto IV
Felicidade clandestina
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto
enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa,
por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter:
um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós, menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos
um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de
paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra
bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como
essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos
livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as
humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E
completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela
o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar
num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim
numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a
outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a
esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho
de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os
dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas
ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do
dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e
o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no
dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se
repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às
vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja
precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia
sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo
que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os
meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa,
apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua
casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco
elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe
boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de
casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da
filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina
loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse
firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por
quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o
que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não
disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava
o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa,
também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas
depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo
comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes.
Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria
ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e
pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase
puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In: Felicidade Clandestina: contos. Rio de Janeiro: Ed. Rocco,
1998 (adaptado).