Texto 4
20
1. Às cinco horas da manhã estava de pé, vestindo-me para ir buscar Lúcia. Na
véspera ao despedir-se de mim ela me dissera:
– Amanhã mudo-me. Venha-me buscar ao romper do dia. Desejo... careço de
entrar apoiada ao seu braço na casa onde vou viver a minha nova existência.
5. Achei-a pronta e esperando-me; os vestígios da comoção violenta que haviam
produzido as amargas recordações desapareciam sob a plácida serenidade que
reslumbrava de sua alma e dava à sua beleza uma suave limpidez.
Partimos a pé, com a fresca da manhã; fizemos um dos mais belos passeios de
que se pode gozar no Rio de Janeiro.[...]
10. Apesar da revelação da véspera, continuava a dar a Lúcia esse doce nome, que
estava tão habituado a pronunciar. Uma vez porém ela olhou-me com uma expressão
de mágoa:
– Paulo – disse-me com brandura –, chama-me Maria!
Desde então, quando eu pronunciava esse nome, sua alma tinha enlevos, e ela
15. acompanhava o movimento de meus lábios estremecendo de gozo, como se todo o seu
corpo sentisse uma doce carícia.
– Quando me chamas assim, Paulo – murmurava ela –, parece-me que tu me
embebes e me afagas num só e imenso beijo que me envolve toda. [...]
Almoçamos, como os pastores de Teócrito, frutas, pão e leite cru: ainda não
20. havia preparos de cozinha, nem fogo. Por volta de onze horas do dia chegou a criada,
com uma menina de doze anos, linda e mimosa como um anjinho de Rafael. Era o
retrato de Lúcia, com a única diferença de ter uns longes de louro cinzento nos cabelos
anelados.
ALENCAR, José de. Lucíola. Porto Alegre: L&PM, 2017. pp. 147 e 148.